quinta-feira, 6 de julho de 2017

Cuidem-se

rape, society, and black and white image

Não é preciso de muita coisa para saber que o mundo é um lugar cheio de maldade. Principalmente se você for mulher, dá para sentir o medo em quase cada passo que se dá. É triste porque desde pequenas somos lembradas disso e dos milhares de detalhes que temos que nos preocupar ao sair de casa para voltar sã e salva. Aumenta o tamanho da saia, diminui o tamanho do salto, não vai sozinha, não volta tarde, não bebe muito, não fale com estranhos, fiquei de olho no copo, não saia de perto, não dance até o chão. Ou melhor, fica em casa.

Eu tento me convencer que é paranoia demais para perigo de menos. Deixo o celular "do ladrão" no bolso mais fácil, escondo o verdadeiro no sutiã e sigo em frente, a passos rápidos, quase correndo, cantarolando pela rua escura para disfarçar o frio na barriga que não é de paixão. Não, não vai acontecer comigo, imagina. É o tipo de coisa que eu falo para mim mesma para não ficar louca e viver um pouco.

Até perceber que os milhares de conselhos que minha mãe me dão não são tão idiotas assim.

De repente estou numa festa com seus amigos - só gente legal, teoricamente - e presencio uma situação que me deixou muito perturbada. Não, não aconteceu nada comigo nem com ninguém. Por pouco. Pelo menos nada mais grave, físico, se é que me entende. Sabe aquelas histórias que você sabe que - infelizmente - são bem comuns, mas só sente o impacto quando acontece perto de você? Hoje vou contar uma dessas histórias e como não fazer o que eu fiz: nada.

Era uma balada gay, um lugar que eu me sentia segura. Ninguém iria me usar como isca para atrair homem, a música é boa, eu posso dançar loucamente sem nem precisar de par, ninguém falaria piadinhas ridículas no meu ouvido ou tocaria em lugares que eu não autorizei. E normalmente é assim mesmo, embora até nas minhas poucas experiências em baladas hétero não tivessem sido tão diferentes. Dessa vez eu vi que estava errada. Talvez eu não devesse me sentir tão segura em lugar nenhum.

Só dançar é bom demais, mas às vezes a gente quer mais que isso. Beijar umas bocas de vez em quando, faz parte. Foi o caso da minha amiga, solteira há pouco tempo, queria aproveitar. Brinquei com ela que caçaria os homens héteros para ela, e na primeira tentativa, arrumei um boy legal para ela. Até aí tudo certo, se ele não tivesse um irmão e um whisky ainda cheio no seu balde.

Recusei os dois, o whisky e o irmão. Tá aí duas coisas que você deve não aceitar, bebida de estranhos e um beijo que você não está a fim. Mas tem uma coisa chamada rejeição que alguns caras deveriam aprender a aceitar.

O cara foi um pé no saco. No início, ainda pagou de gentil, insistiu mais que deveria e eu relevei. Saí de perto, fui para o outro lado da pista e continuei a dançar. Momentos depois, o vi na maior pegação com uma menina que eu conhecia de vista na faculdade. Amém, ele vai me deixar em paz, pensei.

Nem lembrava mais do bundão, quando senti uma mão apalpando a minha bunda. Achei que fosse alguma amiga minha, mas elas não estavam por perto. Estranho. Continuo dançando. De novo. De novo. Ele passou, segurando a mão da menina do outro lado, riu para mim, e ainda falou alguma besteira. Pensei em chamar o segurança, e devia ter chamado mesmo.

O cara escroto continuou a me incomodar. "Gostosa". "Ainda vou te pegar hoje". "Shhhh". "Tá se achando demais". Aí você me pergunta, por que não chamou o segurança? Não sei. Só disse que não queria de jeito nenhum ficar com ele e saí de perto. No entanto, dessa vez eu comecei a prestar atenção na menina que estava com ele o tempo inteiro, inclusive enquanto ele falava todas essas merdas.

De longe, observei. O sinal de alerta mental começou a piscar. A menina continuava bebendo e ficando com ele. Se é que só tinha álcool nas suas veias, porque ela estava fora de si. Parecia que não tinha mais noção de tempo e espaço. Sabe quando as pessoas estão tão alteradas que só seguem a onda e fazem um monte de coisas aleatórias? Tipo isso. Mas se alguém vier me dizer que a culpa é dela porque ela estava bêbada, eu vou dizer que a culpa é dele por ter se aproveitado disso.

Comentei com a minha amiga - aquela que estava ficando com o irmão do cara escroto - que eu estava preocupada com a garota bêbada. Ela então me disse que eles comentaram que ela iria passar a noite na casa dele. Bom, aí já sabemos o que iria acontecer.

Não tem nada demais nisso, tem? Não, tirando o fato dela não estar nada consciente para consentir coisa alguma. E sexo sem consentimento é o quê? Isso mesmo: estupro.

E eu tinha que fazer alguma coisa.

O que eu fiz?

Nada.

Imaginei a possibilidade e fiquei apavorada. Como mulher, me senti na obrigação de impedir. Gostaria que fizessem o mesmo comigo, afinal, poderia ser eu nessa situação, poderia ser qualquer uma. Eu me senti no dever de proteger aquela garota quase desconhecida. Me senti responsável.

No entanto, ao avaliar as opções, fiquei de mãos atadas. Quem seria eu para aquele cara que não deu a mínima para os meus milhares de nãos? Que efeitos minhas palavras teriam na cabeça daquela menina que sequer lembrava de mim? Que justificativa eu daria ao segurança para tirar ele dali? E se ele levasse ela junto? O que eu poderia fazer? O quê? O quê?

Não fiz nada diretamente, mas talvez, indiretamente, falar com minha amiga ajudou. O irmão do cara escroto deu água à menina e a colocou num táxi. A história não teve um final tão trágico, afinal.

No entanto, não estou aqui para falar do incidente em si. Estou aqui para falar do nosso papel diante dessas situações e de como isso tirou meu sono nos últimos dias. Não fazer nada.

Parece até que eu estou falando de Hannah Baker, Bryce Walker e Jessica Davis, mas infelizmente, aqui é vida real. Sem querer dar spoilers, agora eu entendo completamente o que a Hannah sentiu ao presenciar a cena. Salvo as devidas proporções, a sensação de impotência é horrível e compreensível. O que não significa que a gente deva sorrir e acenar.

Não.

Precisamos fazer alguma coisa. Colocar a sororidade em prática. Comprar briga por algo que valha a pena. Meter a colher. Às vezes, ser chamada de louca, intrometida, chata. Faz parte.

Nós precisamos nos cuidar.

É chato ter que ouvir que nós temos que mudar quando na verdade a gente só quer viver uma vida normal sem tantas limitações e preocupações extras. E por mais que eu entenda todos os conselhos de minha mãe, eu não concordo com eles. Devemos fazer justamente o contrário. Resistir. Deixe o tamanho da saia do jeito que você quiser, use salto alto ou baixo, saia sozinha ou com o mundo inteiro, volte a hora que quiser, conheça pessoas novas, dance até os pés doerem. Ok, talvez realmente seja melhor não beber muito e tomar cuidado no seu copo.

Só não deixem de viver, por favor. Saibam que o perigo existe mas não parem por causa dele. Mas para garantir, cuidem-se. Não só de vocês, mas de todas. Vamos nos cuidar.

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